2.9.09

A dor - Parte II


"Não sei dizer o que tomou conta de mim. Se tenho algum cuidado em escrever estas linhas, antes que morra, deve-se sobretudo a um receio de que me entendam mal: a saliva no interior da minha boca não se acumulava à sua visão, as minhas pernas não tremiam de desejo. Não era desejo, mas uma espécie de ciúme sem desejo, um ciúme descarnado que me fez engolir o copo de vinho de uma só vez, e depois outro.

Um certo rubor nas faces. Estendendo a mão para o candeeiro, apaguei a luz e, sem conseguir fechar os olhos ou cerrar as cortinas, implorei que aquilo terminasse o mais depressa possível. Compreendera então, julgo, a natureza da minha situação.

A solidão de um é amenizada pela solidão de outro, e deste modo, mesmo na miséria, existe uma espécie de partilha, de comunhão, a que não se pode dar o nome de alegria mas algo como um encolher de ombros, a minha resignação perante a brutalidade daquilo que me acontecera.

Que ele tivesse alguém e eu não perturbava-me, colocava um entrave à nossa amizade, um ponto final no nosso monólogo. De uma certa maneira que não sei explicar senão com palavras incoerentes, até então tinha sido como se eu tivesse dado um passo ao lado que me tivesse feito sair do mundo, um pequeno passo discreto e silencioso de retirada.

Após essa noite, o mundo notou a minha falta e deu ele também um passo ao lado, mas um passo do mundo é muito maior do que um passo dos nossos, e num certo sentido eu fiquei atrás das coisas, deslocado."


João Tordo, in "O Livro dos Homens sem Luz"
PS: Texto intenso, que a dor não nos faça perder o que há de melhor, VIVER!!! ELi Amorim 02/08/09

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